Como se guarda um olhar? – as palavras que me acordaram hoje, recordo que há muito as confiei à minha avó. Bugre, de mãos calosas e uns ouvidos curtidos, sabia bem encontrar em mim a complexidão mais desconhecida; hoje penso que aprender a procurá-la bem – a complexidão – calha a quem muito a esconde em si. Sucede que, às vezes, simplezas não saciam, não serenam. Noutras vezes, o sereno faz saber que a sede é de aguaceiro.
Naquela vez, a primeira em que me encontrei com essa pergunta – como se guarda um olhar? -, já aprendera que dar pergunta à minha avó era semear terra boa, generosa.
E olhar se guarda, criatura? Que tu andou olhando? – é bem verdade, também, que a mão que minha avó estendia era muito firme. E carícia de pele dura, às vezes, nem parece carinho.
Vó, se dá pra guardar, não sei, mas querer eu sei – contei que, no caminho, havia encontrado olhares com jeito de presentes; e presente eu gostava de guardar.
Ela quis entender se o olhar era a feição do olho ou a feitura dele. Hesitei: alguns daqueles eram olhos de umas cores muito adequadas mesmo, de desenhos bem contornados, de tamanhos bem ajustados, bem proporcionados, mas não era a feição, era a feitura mesma. Queria guardar como aqueles olhos olhavam, o que deixavam ver.
Mas guardar é muita coisa! Não é só dar um lugar onde vai poder procurar depois. Quando o Boris late de noite, ele guarda a casa… quando a tua tia vai pra igreja, guarda o sábado… quando tu quer guardar, quer segredar? quer reservar como fosse teu? quer conservar, que não mude mais? quer cuidar que dure? – eu desejava mais do que sabia. Mesmo conservar aqueles olhares bem como os tinha encontrado – que eu sabia ser um querer sem senso e sem chance – eu quis. Entretanto, o que mais gostava de querer era que os olhares continuassem, cuidar que durassem. Lhes queria tempo. Queria o fim do fim.
Quando a vó buscou saber como eram, eu não soube dizê-los. Havia visto gentes cujos olhos não viram o que mereciam, ou viram o que não lhes cabia; gentes cujos olhos ainda sustentavam pesos que seus braços haviam carregado; gentes cujos olhos se abriam mais quando a garganta mais cerrava, e cerravam quando a garganta mais abria; gente cujos olhos aconchegavam quando tudo mais desconfortava. E brilhavam mais que as águas que eles vertiam.
A mim, a vó entendeu e explicou que eram olhares com afeto, coisa nova para a criança que a ouvia.
…afeto é como que a gente é…
Lembro que a interrompi com pressa de concordar – sim! essa gente, eu as vi inteiras no olhar, vó! nesses que cuido guardar… têm mesmo o que elas são! vó, estavam tanto lá, que pareciam transbordar de lá!
Dentre aqueles olhares, a alguns ainda tento guardar. Quando crescem, parece crescer o mundo que olham. Às vezes, atento, perto, fundo, me surpreende tremeluzindo refletido um olhar meu… ou, assim, nosso.
Eduardo Pacheco Santos
Psicólogo Clínico
CRP 07/32654