Desaperto

Assistir à Sofia me desapertava um pouco a vida.

Nas manhãs quentes mais lentas, prendedores numa sacola de pano, as roupas úmidas sobre os ombros, ela escolhia uma suíte qualquer de Bach para ouvir. Punha a tocar tão alto que cada outro ruído lhe virasse silêncio. Indo ao varal, como quem se espreguiça, esboçava uma dança, um canto. Se espreguiçava dos pés à voz. Um dia, pensei que, se cantar assim era cantarolar, ela dançarolava, mas desgostei dessa bobagem – desaconchegante, a palavra pareceu apertar a dança da Sofia.

Eu a ouviria ouvindo o que ouvisse. Ela ouvia Bach. Gostava de estender roupas e ouvia Bach.

Eu sorria e calava. Atrás da música, me olhando nos olhos, ela escondia umas palavras e ria, porque eu jamais saberia o que dizia. Também porque ela sabia que aquele jeito dela de rir um riso meio mordido bastava para eu querer saber. E eu o fazia. Queria.

O apartamento era bem miúdo. Sem paredes ou distâncias entre varal, mesa e cama. Era palco para ela, e mesmo um velho ignorante podia sabê-lo.

Entre as cordas das roupas e dos violoncelos, ela estendia tudo com graça. Acompanhava as melodias com a voz e as conduzia como a um par na dança. Quem testemunhasse aquele dancejo entre ela e Bach seria conduzido também. Soavam novas as peças mais gastas. Dançou, tá nova – pensava eu, sem metade da graça dela.

Eu aproveitava. Preguiçoso, desadormecendo, fazia da nossa cama minha plateia baixa e a reverenciava.

Às vezes, as roupas nos ombros escondiam um pouco do tanto mais que eles tanto carregavam. Eram só um pouco de pano com um pouco d’água amaciando um pouco o ar com algum cheiro azul e refrescando um pouco a pele que me esquentara a noite inteira.

Noutras vezes, não. Nessas outras, aquelas eram as roupas que já estariam secas quando eu reencontrasse a pele que curaria a minha do sol duro, de todo o dia inteiro, sem sombra ou nuvem que se apiedasse dum velho cansando.

Não sei em quais das vezes achei mais beleza.

Gostava que ela escondesse de mim um pouco do peso da vida. Uma canalhice infantil minha.

Mas gostava também que ela o deixasse insinuado, entreaberto, como quem esconde para encontrarem e que, entretanto, ou sob tanto, ela estendesse roupa e música como se os ombros suportassem o que carregavam. Canalhice velha a minha, eu sei.

Eduardo Pacheco Santos
Psicólogo Clínico
CRP 07/32654

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