Ananda alava toda dente de leão que podia – aquela flor que vira nuvem.
Contam que, desde miudinha, Ananda as dedilhava com a delicadice delas, as levava devagarzinha até quase tocar o riso e lhes dedicava todo o sopro seu. Quando subiam as sementes, subiam também os cílios d’Ananda. Aquelas chuvas de flor lhe faziam brotar arcos nas íris. Sorrir nos olhos aqueles sorrisos, um pouco guardados num canto dos lábios para depois de soprar, trazia para Ananda o sabor secreto das fatias fugidias da torta de bolacha – guardada para depois de gelar.
Certa vez, Ananda soprou sorrindo e assobiou a flor. Saltou pipoca. “Ananda, tu tens molinhas nos pés” – dizia sua mãe. E ao dizê-lo pensava “e essas molinhas no cabelo devem ser para ela voltar quando alcança as nuvens nesses pulos… voa, bate as molinhas e volta e vai de novo”. Para Ananda, assobiar a dente de leão bonitou a sua melhor história. E ela cuidava as histórias, como sua mãe cuidava as molinhas. Pedia à Vólhinha que lhe contasse as suas e, com as orelhas arregaladas e os dedos adoçados, sonhava-se velhinha, historiando também.
Sobre a alcunha – Vólhinha – versava uma das notas do Elucidário da Ananda, que sua mãe guardava junto aos das irmãs, entre cobertas bem passadas e bem dobradas: “ela é minha vó e ela é bem velhinha“. Os pais de Ananda lhe haviam ensinado a gostar de respeitar os idosos. E ela lhes cuidava, dava a mão e convidava: “quer calminhar? é caminhar bem calminha…“. Ananda procurou evidenciar, no nome, que sua avó era idosa, para facilitar aos desatentos. O fez porque entendia que, se alguém não amanhava a prosa para lhe falar, ou não a convidava a calminhar, só podia ser porque não fora avisado que era ela uma velhinha.
Quando empeçou a alar histórias como soprava dentes de leão, Ananda floriu. E cresceu sensibelíssima, acolhendo vidas como colhia flores. Até agora, dessilabando e ressilabando, esculpe as vozes que ouve e as acompanha, levando até mais longe. Talvez não seja a história que te conto elucidária como as d’Ananda, talvez te pareça que um vento qualquer ventaria aquele sopro pela menina, se ela não o assobiasse. Entretanto, é bom saber que, enquanto algumas dentes de leão estão guardadas em nuvem, aguardando o vento, as que Ananda já tocou já choveram sementes livres e brotam nuvens novas.
Então, vem. Vê o campo de nuvens que abraça a casa, não vais desentendê-lo. Há muito, passou o pé de manga! Quando quero desguardar meu riso, vou para lá.
De tempos em tempos, alguém chega ao campo de nuvens e, sem saber calminhar, pisa algumas dentes de leão. Ananda ressilencia, cala o que não disse, recolhe as flores doloridas e as assobia com mais vontade. Até onde já chegaram as molinhas de Ananda, não houve flor pisada que não tenha germinado soprada por ela.
Assobiar, historiar e dobrar silêncios exige muito fôlego, e agora Ananda precisa descansar um pouco – tomar um ar para assobiar outras melodias. Ananda ‘inda não sabe que é o que ela guarda ainda melhor do que o que já soprou. O que não lhe é tão doce evita servir àqueles a quem acolhe. Talvez Ananda tenha deslembrado as misturas das quais nascia a torta de bolacha que lhe adoçava os dedos. Talvez tenha esquecido que o amargo do cacau só melhorava o sabor do doce. Mas há quem acredite que ela, mesmo dessabendo ou deslembrando tudo isso, tem aproveitado esse tempo para bem desdobrar os silêncios que guardou. Quer descobri-los, estendê-los ao sol. Parece que dançaremos com ela uns assobios novos.
Eduardo Pacheco Santos
Psicólogo Clínico
CRP 07/32654